LITERATURA

23/11/2012

Quem tem coragem de lutar contra a violência!?! Age of Iron- Um livro que trata da violência na África do Sul durante o regime do apartheid.

 
 
 

Um dos meus heróis, o escritor J.M. Coetzee sofre do mesmo mal que outros artistas Sul-Africanos espetaculares- entre eles, Marlene Dumas e William Kentridge.  O mal é a culpa e a angústia causada por presenciar atos criminosos  contra os negros em seu país e não ter a coragem de lutar ativamente contra esta tragédia.  Todos os três exibem em sua arte esta angustia que lhes corrói a alma.

Este livro espetacular que li em duas horas não consegui parar nem para mudar de posição, tal o envolvimento.

Mrs Cullen é uma senhora que está morrendo de câncer e começa a escrever cartas à sua filha que mora nos Estados Unidos como forma de deixar a ela uma “herança”. A filha havia deixado a África do Sul prometendo nunca mais voltar- enquanto estes “animais” estivessem no poder. A poucos quilômetros de sua casa acontecem chacinas muito semelhantes às que temos presenciando na periferia de São Paulo nas últimas semanas.  Sua empregada doméstica volta da folga trazendo junto seus  filhos, tentando protegê-los da violência da periferia e Mrs Cullen se vê “sitiada” por adolescentes rebeldes e violentos, os quais por um lado admira pela coragem de se levantar contra o regime opressor e por outro lado tem horror- principalmente por desafiar os mais velhos.  Esta mesma dualidade se encontra nos filmes e trabalhos de Kentridge e também de Marlene Dumas.  Ao mesmo tempo que Coetzee relata seu desprezo por estes seres humanos abusivos, desafiadores, tem pena e culpa de não ajudá-los a vencer a ditadura, o preconceito e a violência por parte do governo.

deixados para trás

left behind

 A história é toda contada através do uso de um personagem adicional que faz a figura do “alter ego” – e Coetzee é um mestre nesta técnica, tendo usado a mesma em outros livros, Elizabeth Costello entre outros.  Em seus livros, o autor tem longas conversas com si mesmo. Em “Age of Iron” o personagem é Vercueil, um alcoólatra, morador de rua, que Mrs. Cullen encontra em sua casa uma tarde dormindo na garagem.  Ela quer e “não quer” se livrar dele.  Ele invade sua casa, traz uma companheira para morar lá, está sempre bêbado, fedorento, sujo- mas ela não consegue expulsa-lo pois sabendo da morte iminente quer o homem para “guiá-la” até o “outro lado” . Em meio a violência que os circunda, Vercueil é a pessoa que lhe mostra o lado do amor do ser humano.

 Coetzee e Kentridge são tão especiais porque nos colocam nesta berlinda que também vivemos aqui no Brasil- a dualidade de ter que conviver com o bandido que te assalta e mata mas ao mesmo tempo nos dá pena pois sabemos que alguns deles não tem nada a perder, nunca teve uma chance na vida.  Sou suspeita de elogiar Coetzee.  Tenho e li várias vezes quase todos os seus livros e fiquei surpresa de encontrar este que foi publicado a primeira vez em 1990 e que eu não conhecia.  Imperdíiiiivellll!

 
31/10/2012

“A Artista do Corpo”, mais um intrigante livro de Don DeLillo

 
 
 

Quando o artista lança sua arte ao público, cada um a consome através de seus filtros “coadores”.  Cada qual a molda de acordo com sua história pessoal.  É esta a conclusão a qual cheguei apos a leitura de um excelente livro de Don De Lillo, “A artista do corpo”. O livro trata do luto de uma viúva cujo marido cometeu suicídio.

Na verdade trata da maneira com a qual ela se relaciona com o luto, e com a relação com o marido, através de um fantasma (ou será realidade?) de um homem aparentemente com alguma doença tipo Alzheimer’s  e que em certos momentos parece com seu marido.  E faz mais, através do luto a viúva se auto descobre e se re-descobre.

Como é característico de De Lillo, vc tem que prestar muita atenção a leitura e eu me peguei voltando às primeiras páginas várias vezes para saber se o que eu estava entendendo era o que o autor queria dizer.   Ele deixa as coisas “meio no ar” e vc tem que tirar suas próprias conclusões ou montar seu tabuleiro de xadrez para saber qual a intenção da história contada.  Será que o que eu acho que li é o que eu li? No meu entender, Rey, o marido suicida, já possuía alguma doença do esquecimento pois nos primeiros diálogos tenta lembrar de algo para dizer a Lauren e não consegue lembrar- também fala algumas coisas desconexas.

Mais pra frente no livro, o homem ou fantasma que Lauren encontra sentado de roupa de baixo num dos inúmeros quartos da casa alugada em que mora, também carrega esta linguagem reticente e na maioria das vezes incompreensível.   Em seu livro mais recente, “Homem em queda” DeLillo também aborda cuidadosamente  o esquecimento, Alzheimer’s e  o suicídio de pessoas próximas.

O livro fala muito de como nos relacionamos com o tempo e nestes trechos é realmente poético.  Aliás, todo o livro lida com o fantasma e a dor da morte de entes queridos com uma delicadeza única, como se estivesse manipulando um véu de noiva muito antigo que vai se desfazendo a medida que o tocamos.

Veja um trecho: “Alguma coisa está acontecendo.  Já aconteceu.  Vai acontecer.  Era nisso que ela acreditava.   Há uma história, no fluxo da consciência e possibilidade.  O futuro vem a ser. Mas não para ele. Ele não aprendeu a linguagem.  Tem de haver um ponto imaginário, um não lugar em que a linguagem cruza com nossas percepções do tempo e do espaço, e ele é um estranho nessa encruzilhada, sem palavras nem orientação. Mas ele sabia o que? Nada.  Este é o papel do tempo  Ele é a coisa sobre a qual você não sabe nada.” Para mim, em particular, o parágrafo acima lida com o tempo mas para mim também descreve o que pode estar acontecendo a uma pessoa que tem Alzheimer’s. Fiquei curiosa para saber a opinião de outros leitores e pesquisei um pouco na internet e acabei descobrindo até uma entrevista com Don De Lillo que nos abre uma fresta e mostra como ele próprio cria seus personagens, como vive e como pensa.   Link:  http://www.theparisreview.org/interviews/1887/the-art-of-fiction-no-135-don-delillo

Como as opiniões sobre este livro em particular são muito diversas, cheguei a conclusão que quando vejo muitas opiniões sobre alguma obra de arte: depois que o artista lança sua arte ao público, cada um a consome como lhe apetece.  Cada um a vê através de uma moldura formada por sua própria vivência- e a obra de arte (neste caso literatura) nos alimenta e nos satisfaz de acordo com nossa história pessoal. Don DeLillo, “A Artista do Corpo”, Companhia das Letras.