Quando o artista lança sua arte ao público, cada um a consome através de seus filtros “coadores”. Cada qual a molda de acordo com sua história pessoal. É esta a conclusão a qual cheguei apos a leitura de um excelente livro de Don De Lillo, “A artista do corpo”. O livro trata do luto de uma viúva cujo marido cometeu suicídio.
Na verdade trata da maneira com a qual ela se relaciona com o luto, e com a relação com o marido, através de um fantasma (ou será realidade?) de um homem aparentemente com alguma doença tipo Alzheimer’s e que em certos momentos parece com seu marido. E faz mais, através do luto a viúva se auto descobre e se re-descobre.
Como é característico de De Lillo, vc tem que prestar muita atenção a leitura e eu me peguei voltando às primeiras páginas várias vezes para saber se o que eu estava entendendo era o que o autor queria dizer. Ele deixa as coisas “meio no ar” e vc tem que tirar suas próprias conclusões ou montar seu tabuleiro de xadrez para saber qual a intenção da história contada. Será que o que eu acho que li é o que eu li? No meu entender, Rey, o marido suicida, já possuía alguma doença do esquecimento pois nos primeiros diálogos tenta lembrar de algo para dizer a Lauren e não consegue lembrar- também fala algumas coisas desconexas.
Mais pra frente no livro, o homem ou fantasma que Lauren encontra sentado de roupa de baixo num dos inúmeros quartos da casa alugada em que mora, também carrega esta linguagem reticente e na maioria das vezes incompreensível. Em seu livro mais recente, “Homem em queda” DeLillo também aborda cuidadosamente o esquecimento, Alzheimer’s e o suicídio de pessoas próximas.
O livro fala muito de como nos relacionamos com o tempo e nestes trechos é realmente poético. Aliás, todo o livro lida com o fantasma e a dor da morte de entes queridos com uma delicadeza única, como se estivesse manipulando um véu de noiva muito antigo que vai se desfazendo a medida que o tocamos.
Veja um trecho: “Alguma coisa está acontecendo. Já aconteceu. Vai acontecer. Era nisso que ela acreditava. Há uma história, no fluxo da consciência e possibilidade. O futuro vem a ser. Mas não para ele. Ele não aprendeu a linguagem. Tem de haver um ponto imaginário, um não lugar em que a linguagem cruza com nossas percepções do tempo e do espaço, e ele é um estranho nessa encruzilhada, sem palavras nem orientação. Mas ele sabia o que? Nada. Este é o papel do tempo Ele é a coisa sobre a qual você não sabe nada.” Para mim, em particular, o parágrafo acima lida com o tempo mas para mim também descreve o que pode estar acontecendo a uma pessoa que tem Alzheimer’s. Fiquei curiosa para saber a opinião de outros leitores e pesquisei um pouco na internet e acabei descobrindo até uma entrevista com Don De Lillo que nos abre uma fresta e mostra como ele próprio cria seus personagens, como vive e como pensa. Link: http://www.theparisreview.org/interviews/1887/the-art-of-fiction-no-135-don-delillo
Como as opiniões sobre este livro em particular são muito diversas, cheguei a conclusão que quando vejo muitas opiniões sobre alguma obra de arte: depois que o artista lança sua arte ao público, cada um a consome como lhe apetece. Cada um a vê através de uma moldura formada por sua própria vivência- e a obra de arte (neste caso literatura) nos alimenta e nos satisfaz de acordo com nossa história pessoal. Don DeLillo, “A Artista do Corpo”, Companhia das Letras.
Excelente crítica, mesmo eu não tendo ainda lido o livro. Cria a curiosidade pela obra, sem estragar o prazer da descoberta. E concordo plenamente, lemos o que nossas molduras internas moldam aos nossos olhos. beijo.vi.